O vizinho foi interrogado. Afirmou não ter escutado nada. Especulei estar mentindo. Três tiros não se ouve todo dia, pelo menos no bairro onde moro. Três tiros naquela zona devia ser coisa do dia a dia. O vizinho não contou nada. É a lei da comunidade. Eu já tinha tempo de campo e sabia que aquilo tudo era uma farsa verdadeira. Deixei de julgar depois que entendi as diferentes camadas que existem no sistema social. Se alguém entrega algo ou alguém é como virar de costas pra sua própria história. Naquele lugar era assim: respeito é o que mantém a cabeça erguida. Depois da rotina técnica em situações de homicídio, voltei pra o carro, acendi um cigarro e tentei olhar aquele lugar e aquela gente, como gente de muitos antepassados. O sistema é implacável, ninguém escapa. Então eu entendo o vizinho que não escutou três tiros na casa ao lado. Muro com muro. Laje com laje. Eu compreendo que, cedo ou tarde, alguém procura furar o sistema. Mas o que se escapa nessa vida? Andar pelos becos da cidade, na madrugada, estabelece uma tensão que não dorme nos imóveis mais caros. Esses são, na maioria das vezes, imunes a abordagem. Os becos são vidas num conjunto distante do centro, ainda que os moradores em situação de rua têm mostrado que nem as praças são públicas. Essa tensão acontece na entrada da boca, na pele arrepiada. O meu trabalho é uma droga. Mesmo em casa penso como defender a vida. É um sistema sem brecha, especulação minha. No fim, um colega entrou no carro e fomos embora daquele bairro. Voltei a mim e apaguei o cigarro. O trabalho também vicia.