Satanás


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Severo Garcia
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Severo Garcia

No rádio, Carlos Gardel cantava no dia em que conversei com Satanás. Bebemos e fiquei de porre. Neste mesmo dia, fui num velório e roubei um anel. No dia seguinte ardi em febre. A febre atravessa as ideias. Só, acabo em mim quando não acabo em nada. Me apanho acordado suado, sedento por dentro. Nem tento sonhar. Estrangulo a palavra seca. Não suporto o silêncio imenso da madrugada. Delirei ou vi a mulher aranha limpando vidros em um prédio alto? Ela deve ter contas pra pagar e crianças pra criar. Não deve ser fácil se equilibrar em um trabalho arriscado. Aprendi a mentir naquela noite de bebedeira. Nunca fui amado, disse à Satanás. Expliquei muita coisa, não justifiquei quase nada. Foi neste dia que pedi um favor para poder seguir. Enfeiticei os olhos e ouvidos para calar o coração. Autopreservação. Os inimigos não são as pragas e os prestadores, mas o outro, eu mesmo. Quasitude é imperfeição. O pecado do desejo está traduzido em qual língua? Contei a Satanás como era ser um homem abandonado. Meu pai escrevia histórias, mas seriam elas para mim? Sou filho de um homem sem nome que se vestiu do sacrifício de sua própria covardia. Satanás riu. Disse: a última vez que ouvi falar de teu pai foi a primeira vez que soube de você. Os mortos estão do outro lado do muro. Foi assim.

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